sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O Testamento do Padre Freitas – Uma análise histórica.



Segundo um dos ramos da história chamado de teoria da história, uma das formas de se analisar os comportamentos sociais ao longo do tempo pode ser a análise de testamentos. Padre Freitas morrera em 1868, mas redigiu em 1862 seu testamento. Hoje para nós, o mais importante documento histórico da cidade dentro do gênero, mas caindo no esquecimento junto com boa parte da memória da cidade.
Reafirmando nosso compromisso de explicar um pouco mais sobre a história de nossa cidade iremos comentar detalhadamente o testamento presente nas obras da historiografia piripiriense, mas sem a minúcia a qual nos pretendemos. Escrito em seis laudas, este documento é de uma riqueza em detalhes que vão além das vontades pessoais do testador, alcançando a compreensão da mentalidade da sociedade elitista brasileira do século XIX. 

Até o século XVIII, a boa elaboração do testamento era uma conduta de garantia da salvação, resquícios da mentalidade medieval. Durante os séculos XVIII e XIX, observamos uma gradual transição neste processo, pois ainda permanecia como ato religioso, mas agora também deveria ser certificado pela lei dos homens com o registro oficial.

Via de regra, estes documentos quando preparados nos meados do século XIX eram divididos em uma parte com cláusulas religiosas e outra contendo as cláusulas materiais. Era iniciado com a invocação da Santíssima Trindade: “Jesus Maria José – Em nome da Santíssima Trindade Padre, Filho e Espírito Santo Amém”.

A temporalidade registrada deveria estar ligada à religião:

...Saibam quantos este público instrumento de Testamento virem que sendo no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e sessenta e dois, aos cinco dias do mês de Novembro...”.

 Em seguida, temos a identificação do testador: “Eu Padre Domingos de Freitas e Silva...”. Indicando suas questões pessoais, desde a sanidade mental, fundamental para a veracidade jurídica do documento, sua ascendência legítima, naturalidade, estado civil, domicílio e filhos. No século XIX, a hora da morte era ocasião única, solene e crucial, onde a falta da verdade era ato impraticável.

“...em casa de minha morada estando com perfeita saúde, e em uso meu perfeito juízo[...]Declaro que sou natural da freguesia de Nossa Senhora da Graça da Cidade da Parnaíba[...]filho legítimo de Domingos de Freitas Caldas e de Rita Maria de Almeida[...] e sou presbítero secular, canonicamente ordenado neste supracitado bispado”.


A nomeação das divindades mediadoras da “boa morte” também se fazia necessária:
Primeiramente encomenda minha alma a Santíssima Trindade, que a criou, e rogo ao Eterno Padre a queira receber, assim como recebeu a de eu Unigênito Filho, quando expirou na cruz; a Maria Santíssima peço e rogo seja minha intercessora e advogada; ao santo do meu nome, e a todos os Santos da corte celestial, e como verdadeiro e fiel cristão protesto viver e morrer nesta Santa Fé...”

Os testadores também nomeavam os testamenteiros, geralmente eleitos em meio aos familiares diretos:
“Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a Domingos de Freitas Silva Júnior, e em segundo lugar a Raimundo de Freitas Silva, meus filhos...

O testamento precisava para ser válido judicialmente, da assinatura de determinadas testemunhas e do reconhecimento do tabelião. Judith Santana em “Piripiri” afirma à pág 17, que o presente testamento foi contemplado pelo escrivão Miguel Antônio da Rocha Lima onde testemunharam os senhores Francisco Zabulon de Almeida Pires, José Coriolano de Souza Lima, Major Simplicio Coelho de Rezende e Antônio Lopes Castelo Branco.

Segundo o Historiador George Duby: “Mais do que a morte, nossos ancestrais temiam o Juízo Final, a punição do além e os suplícios do inferno”  pois a boa morte asseguraria a vida eterna, fazendo parte desta mentalidade o acerto de contas, pagamento de dívidas, doação de esmolas, encomendações de missas e orações bem como também, os cuidados normas de organização das pompas do funeral:

...Meu corpo será sepultado na Capela de Nossa Senhora dos Remédios, ereta a minha expensas caso faleça neste lugar de Piripiri por mim fundado; meu enterramento será feito com acompanhamento de meus irmãos Sacerdotes, que existirem no lugar. [...]No dia de meu enterro darão meus Testamenteiros trinta mil réis de esmolas aos pobres, que acompanharem o meu corpo a sepultura; com igualdade, e mandarão dizer a missa de Corpo presente, por minha alma pelos sacerdotes...” 

Nos oitocentos, mesmo sendo a prática de composição de testamentos relacionada aos grupos abastados da população, era possível localizar a presença de elementos das camadas populares, como por exemplo, os escravos que de forma indireta participam recebendo benefícios diversos, onde os testadores reconheciam este ato como de extrema caridade:

“...O escravo José deixo liberto na metade de seu valor, e a escrava Tomázia deixo liberta em remuneração de ter criado ao meu herdeiro Antonio Francisco...”

Mesmo concedendo a alforria a alguns cativos, a mentalidade escravocrata do período é bem presente:

“Declaro que meus filhos herdeiros Domingos, Raimundo, Freitas Júnior, Antonio Francisco e Amélia Clemência, todos tiveram um escravo que herdaram por parte de sua mãe[...]Declaro que possuo os escravos seguintes: José Nação Angola – Camilo cabra – Antonio criolo – Samuel cabra – Jonas cabra – Tomázia criola...”

Outro fator bem marcante dos testamentos dos anos oitocentos eram as dívidas relacionadas ao moribundo, demonstrando o caráter material, se fazia necessária à exposição e distribuição dos bens móveis e imóveis do testador no pós-morte, o detalhamento de gestos benevolentes e também a distinção entre credores e devedores.
Padre Freitas em seu testamento cita ações recebidas por sua pessoa:

“[...]declaro que estudei, e ordenei-me a custa de meu padrinho de batismo o reverendo Henrique, o qual fez todas as despesas por equidade, e benevolência a meu benefício, por isso nenhuma despesa fiz a meus pais...”. Também cita ações realizadas a seus familiares de sangue: “declaro que mandei buscar para minha companhia minha irmã Catarina de Sena e sua filha Matildes e quatro filhas de minha finada irmã Maria Rita da Silva por estarem em extrema necessidade...e que as quais sustentei de comida e vestuário até casar, dando-lhes a cada uma cem mil réis...”.

Outra ação de Padre Freitas que nos chamou atenção em seu testamento diz respeito a sua preocupação com a educação de duas de suas enteadas, pois àquela época era bastante comum, o analfabetismo entre as mulheres:

Declaro que eduquei e casei Lucinda Rita e Joana Paula...ambas filhas da finada Lucinda Rosa de Sousa, mãe de meus herdeiros e ambas dotei com dotes suficientes, bem como escravos, gados ouro e prata...”

Os testamentos não raramente, eram utilizados como última oportunidade de acertar contas, reconhecer e indicar dívidas, que certamente não acabariam junto com os suspiros do testador, pelo contrário, farão parte da herança transferida aos familiares:

 “[...] Declaro que o Capitão Antonino Ferreira de Araújo e Silva, morador na Cidade da Parnaíba me é devedor da quantia de cento e setenta e quatro mil réis...”.

Nem mesmo os colegas do eclesiástico, mesmo já falecidos escaparam da lembrança:

 “[...] O finado vigário da supradita Cidadão Domingos Rodrigues Chaves ficou me devendo quatrocentos e tantos mil réis de resto de uma morada de casa que comprou-me na mesma cidade...”.

Nos séculos iniciais da colonização portuguesa do Brasil alguns utensílios domésticos eram objetos raros usados somente em grandes ocasiões. No Piauí do século XIX, esses objetos eram considerados muito refinados, faziam parte apenas do requinte de algumas famílias de elite, merecendo ser enumerados em testamentos e inventários como parte da herança:

 “[...]declaro que possuo obras de prata, sendo castiçais em manga de vidro, jarro, bacia, copo, salva, talheres, um cálix, e caixa dos Santos Óleos, com relíquias dentro da mesma, e uma caixa de tabaco de ouro...”

Na conclusão dos testamentos vinham invocações para que fossem cumpridas de acordo com as leis dos homens as realizações necessárias:

 “[...] e rogo as Justiças de Sua Majestade Imperial e Constitucional de um outro foro e a façam cumprir...e declaro por esta minha última vontade, por mim feito, reassinado, e em meu perfeito juízo perante as testemunhas...Povoação de Piripiri do Termo de Piracuruca dez de Novembro de mil oitocentos e sessenta e dois. DOMINGOS DE FREITAS E SILVA”.


Percebemos aqui que estes documentos demonstram a mentalidade do homem oitocentista, onde a morte fazia parte do seu cotidiano. Este testamento que analisamos, está de acordo com os modelos de sua época. Sendo mais uma peça na complexa engrenagem da história do Brasil, e uma peça fundamental para a História de Piripiri.  


Bibliografia:
ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. 2. ed. Lisboa: Stampa, 1975
ARIÈS, Philippe O homem diante da morte. v. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977
REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
MELLO, Cléa Rezende Neves de. Memórias de Piripiri – Brasília s.n. 2ª Ed. 2001.
REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”  in história da vida Privada vol.2 ed Companhia da Letras, São Paulo.
SANTANA, Judith Alves. Piripiri.1972.






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