Segundo
um dos ramos da história chamado de teoria da história, uma das formas de se
analisar os comportamentos sociais ao longo do tempo pode ser a análise de
testamentos. Padre Freitas morrera em 1868, mas redigiu em 1862 seu testamento.
Hoje para nós, o mais importante documento histórico da cidade dentro do
gênero, mas caindo no esquecimento junto com boa parte da memória da cidade.
Reafirmando nosso compromisso de explicar um pouco mais sobre a
história de nossa cidade iremos comentar detalhadamente o testamento presente
nas obras da historiografia piripiriense, mas sem a minúcia a qual nos
pretendemos. Escrito em seis laudas, este documento é de uma riqueza
em detalhes que vão além das vontades pessoais do testador, alcançando a
compreensão da mentalidade da sociedade elitista brasileira do século XIX.
Até
o século XVIII, a boa elaboração do testamento era uma conduta de garantia da
salvação, resquícios da mentalidade medieval. Durante os séculos XVIII e XIX, observamos
uma gradual transição neste processo, pois ainda permanecia como ato religioso,
mas agora também deveria ser certificado pela lei dos homens com o registro
oficial.
Via de regra, estes
documentos quando preparados nos meados do século XIX eram divididos em uma
parte com cláusulas religiosas e outra contendo as cláusulas materiais. Era
iniciado com a invocação da Santíssima Trindade: “Jesus Maria José – Em nome da Santíssima Trindade Padre, Filho e
Espírito Santo Amém”.
A temporalidade
registrada deveria estar ligada à religião:
“...Saibam quantos
este público instrumento de Testamento virem que sendo no Ano do Nascimento de
Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e sessenta e dois, aos cinco dias
do mês de Novembro...”.
Em seguida, temos a
identificação do testador: “Eu Padre
Domingos de Freitas e Silva...”. Indicando suas questões pessoais, desde a
sanidade mental, fundamental para a veracidade jurídica do documento, sua
ascendência legítima, naturalidade, estado civil, domicílio e filhos. No século
XIX, a hora da morte era ocasião única, solene e crucial, onde a falta da
verdade era ato impraticável.
“...em casa de minha morada estando com perfeita
saúde, e em uso meu perfeito juízo[...]Declaro que sou natural da freguesia de
Nossa Senhora da Graça da Cidade da Parnaíba[...]filho legítimo de Domingos de
Freitas Caldas e de Rita Maria de Almeida[...] e sou presbítero secular,
canonicamente ordenado neste supracitado bispado”.
A nomeação das
divindades mediadoras da “boa morte” também se fazia necessária:
“Primeiramente encomenda minha alma a
Santíssima Trindade, que a criou, e rogo ao Eterno Padre a queira receber,
assim como recebeu a de eu Unigênito Filho, quando expirou na cruz; a Maria
Santíssima peço e rogo seja minha intercessora e advogada; ao santo do meu
nome, e a todos os Santos da corte celestial, e como verdadeiro e fiel cristão
protesto viver e morrer nesta Santa Fé...”
Os testadores também nomeavam
os testamenteiros, geralmente eleitos em meio aos familiares diretos:
“Nomeio para meus
Testamenteiros em primeiro lugar a Domingos de Freitas Silva Júnior, e em
segundo lugar a Raimundo de Freitas Silva, meus filhos...”
O testamento
precisava para ser válido judicialmente, da assinatura de determinadas
testemunhas e do reconhecimento do tabelião. Judith Santana em “Piripiri” afirma à pág 17, que o
presente testamento foi contemplado pelo escrivão Miguel Antônio da Rocha Lima
onde testemunharam os senhores Francisco Zabulon de Almeida Pires, José
Coriolano de Souza Lima, Major Simplicio Coelho de Rezende e Antônio Lopes
Castelo Branco.
Segundo o Historiador
George Duby: “Mais do que a morte, nossos
ancestrais temiam o Juízo Final, a punição do além e os suplícios do inferno” pois a boa morte asseguraria a vida eterna,
fazendo parte desta mentalidade o acerto de contas, pagamento de dívidas,
doação de esmolas, encomendações de missas e orações bem como também, os
cuidados normas de organização das pompas do funeral:
“...Meu corpo será sepultado na Capela de
Nossa Senhora dos Remédios, ereta a minha expensas caso faleça neste lugar de
Piripiri por mim fundado; meu enterramento será feito com acompanhamento de
meus irmãos Sacerdotes, que existirem no lugar. [...]No dia de meu enterro
darão meus Testamenteiros trinta mil réis de esmolas aos pobres, que
acompanharem o meu corpo a sepultura; com igualdade, e mandarão dizer a missa
de Corpo presente, por minha alma pelos sacerdotes...”
Nos oitocentos, mesmo
sendo a prática de composição de testamentos relacionada aos grupos abastados
da população, era possível localizar a presença de elementos das camadas
populares, como por exemplo, os escravos que de forma indireta participam
recebendo benefícios diversos, onde os testadores reconheciam este ato como de
extrema caridade:
“...O escravo José deixo liberto na metade de
seu valor, e a escrava Tomázia deixo liberta em remuneração de ter criado ao
meu herdeiro Antonio Francisco...”
Mesmo concedendo a
alforria a alguns cativos, a mentalidade escravocrata do período é bem
presente:
“Declaro que meus filhos herdeiros
Domingos, Raimundo, Freitas Júnior, Antonio Francisco e Amélia Clemência, todos
tiveram um escravo que herdaram por parte de sua mãe[...]Declaro que possuo os
escravos seguintes: José Nação Angola – Camilo cabra – Antonio criolo – Samuel
cabra – Jonas cabra – Tomázia criola...”
Outro fator bem
marcante dos testamentos dos anos oitocentos eram as dívidas relacionadas ao
moribundo, demonstrando o caráter material, se fazia necessária à exposição e
distribuição dos bens móveis e imóveis do testador no pós-morte, o detalhamento
de gestos benevolentes e também a distinção entre credores e devedores.
Padre Freitas em seu
testamento cita ações recebidas por sua pessoa:
“[...]declaro que estudei, e
ordenei-me a custa de meu padrinho de batismo o reverendo Henrique, o qual fez
todas as despesas por equidade, e benevolência a meu benefício, por isso
nenhuma despesa fiz a meus pais...”. Também
cita ações realizadas a seus familiares de sangue: “declaro que mandei buscar para minha companhia minha irmã Catarina de
Sena e sua filha Matildes e quatro filhas de minha finada irmã Maria Rita da
Silva por estarem em extrema necessidade...e que as quais sustentei de comida e
vestuário até casar, dando-lhes a cada uma cem mil réis...”.
Outra ação de Padre
Freitas que nos chamou atenção em seu testamento diz respeito a sua preocupação
com a educação de duas de suas enteadas, pois àquela época era bastante comum,
o analfabetismo entre as mulheres:
“Declaro que eduquei e casei Lucinda Rita e
Joana Paula...ambas filhas da finada Lucinda Rosa de Sousa, mãe de meus
herdeiros e ambas dotei com dotes suficientes, bem como escravos, gados ouro e
prata...”
Os
testamentos não raramente, eram utilizados como última oportunidade de acertar
contas, reconhecer e indicar dívidas, que certamente não acabariam junto com os
suspiros do testador, pelo contrário, farão parte da herança transferida aos
familiares:
“[...]
Declaro que o Capitão Antonino Ferreira de Araújo e Silva, morador na Cidade da
Parnaíba me é devedor da quantia de cento e setenta e quatro mil réis...”.
Nem
mesmo os colegas do eclesiástico, mesmo já falecidos escaparam da lembrança:
“[...] O
finado vigário da supradita Cidadão Domingos Rodrigues Chaves ficou me devendo
quatrocentos e tantos mil réis de resto de uma morada de casa que comprou-me na
mesma cidade...”.
Nos séculos iniciais
da colonização portuguesa do Brasil alguns utensílios domésticos eram objetos
raros usados somente em grandes ocasiões. No Piauí do século XIX, esses objetos
eram considerados muito refinados, faziam parte apenas do requinte de algumas
famílias de elite, merecendo ser enumerados em testamentos e inventários como
parte da herança:
“[...]declaro
que possuo obras de prata, sendo castiçais em manga de vidro, jarro, bacia,
copo, salva, talheres, um cálix, e caixa dos Santos Óleos, com relíquias dentro
da mesma, e uma caixa de tabaco de ouro...”
Na conclusão dos
testamentos vinham invocações para que fossem cumpridas de acordo com as leis
dos homens as realizações necessárias:
“[...] e
rogo as Justiças de Sua Majestade Imperial e Constitucional de um outro foro e
a façam cumprir...e declaro por esta minha última vontade, por mim feito,
reassinado, e em meu perfeito juízo perante as testemunhas...Povoação de
Piripiri do Termo de Piracuruca dez de Novembro de mil oitocentos e sessenta e
dois. DOMINGOS DE FREITAS E SILVA”.
Percebemos
aqui que estes documentos demonstram a mentalidade do homem oitocentista, onde
a morte fazia parte do seu cotidiano. Este testamento que analisamos, está de
acordo com os modelos de sua época. Sendo mais uma peça na complexa engrenagem
da história do Brasil, e uma peça fundamental para a História de Piripiri.
Bibliografia:
ARIÈS, Philippe. História da morte no
ocidente. 2. ed. Lisboa: Stampa, 1975
ARIÈS, Philippe O homem diante da morte. v. II. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1977
REIS, João José. A morte é uma festa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
MELLO,
Cléa Rezende Neves de. Memórias de Piripiri – Brasília s.n. 2ª Ed. 2001.
REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista” in história da vida Privada vol.2 ed Companhia
da Letras, São Paulo.
SANTANA, Judith Alves. Piripiri.1972.